“Cá tomo em Santa Apolónia um bilhete para me transportar a Azambuja, ao sol e à poeira de um estúpido compartimento de primeira classe, almofadado em lã como um aparelho sudorífero, enquanto a dois passos de distância reluz aos meus olhos a bela faixa aquática do Tejo, em que deslizam, reflectindo-se como num espelho, as velas enfunadas e vermelhas das faluas.
Ó meu tão pitoresco e vestuto vaporzinho de Vila Nova! Com que saudades me lembro da vestuta navegação em que nos levavas à velha estrada das Caldas! E com que sincero ardor amaldiçôo os que tão acintosamente os imolaram à pedantesca retórica administrativa, à sórdida metáfora do silvo da locomotiva rasgando as entranhas do progresso!
(Ramalho Ortigáo, “As Farpas”)
A Fermodel associa-se à efeméride que celebra os 165 anos da primeira viagem de comboio em Portugal no troço entre Lisboa e o Carregado, realizada a 28 de Outubro de 1856, com a publicação de um artigo da autoria de Mário Mendes (membro da Fermodel).
Hoje, dia 28 de Outubro de 2021, completam-se 165 anos da inauguração do caminho de ferro em Portugal.
Em boa verdade essa não terá sido a “viagem inaugural”, pois que as duas locomotivas ao serviço já haviam feito inúmeras viagens naquele troço durante a fase da construção.
Mas para assinalarmos uma tão importante data no domínio do transporte ferroviário, que permitiu o avanço de civilizações por todo o mundo, virá a propósito evocar como chegou o caminho de ferro a Portugal.
Um pouco de história
A primeira empresa nacional para a construção de caminhos de ferro foi a “Companhia das Obras Públicas de Portugal”, criada em 1844 pelo governo de Costa Cabral para promover o desenvolvimento dos transportes em Portugal; no entanto, esta tentativa falhou devido à instabilidade política.
Após o regresso a um ambiente mais estável, renovou-se o interesse pelo caminho de ferro, pelo que, em 1851, o empresário inglês Hardy Hislop apresentou uma proposta para uma linha de Lisboa a Badajoz, que foi entregue no ano seguinte à “Companhia Central Peninsular dos Caminhos de Ferro de Portugal”, formada por Hislop para esse fim, sendo assinado o contrato em 13 de Maio de 1853, para a construção de um troço até Espanha, passando por Santarém e seguindo o vale do Tejo, com a bitola de 1,44m.
E é em 28 de Maio de 1853 que a Rainha D. Maria II inaugura o início das obras da primeira linha de comboios, cujo troço inicial seria de Lisboa até ao Carregado.
Porém, as obras foram paralisadas devido a conflitos entre a empresa e os empreiteiros, tendo a gestão das obras passado para o estado português, sob a égide de Fontes Pereira de Melo, que em 15 de Dezembro de 1855 assina novo contrato com a “Shaw & Waring Brothers”.
Até que em 28 de Outubro de 1856, foi inaugurado o primeiro troço, até ao Carregado, designado por “Linha do Leste”, já que o propósito seria levar o comboio à fronteira com a Espanha, até Badajoz.
Todavia, a companhia continuou a sofrer de graves problemas financeiros e de gestão. Então, o empresário inglês Samuel Morton Peto, que se encontrava a dirigir as obras, foi encarregado de formar uma nova empresa, que substituísse a Companhia Peninsular, mas sem sucesso, tendo o seu contrato terminado em 6 de Junho de 1859.
A inauguração da linha do comboio até ao Carregado
Finalmente, no dia 28 de Outubro de 1856 foi inaugurado o primeiro serviço público dos caminhos de ferro em Portugal, ligando Lisboa (Estação de Santa Apolónia) ao Carregado, na distância de 36,454 Kms.
Juntaram-se na Estação o rei D. Pedro V, acompanhado pelo pai, D. Fernando II, a infanta Isabel Maria, o Cardeal Patriarca de Lisboa, membros do corpo diplomático e altos funcionários do estado.
Estava previsto que o primeiro comboio a circular em Portugal iria ser composto por catorze carruagens e duas locomotivas, indo na carruagem do centro a família real, enquanto que na primeira iria a Guarda Real dos Archeiros, sendo que uma das locomotivas era a locomotiva a vapor Nº 1, denominada “D. Luíz”, por homenagem ao irmão do rei, o infante D. Luiz, que viria a ser monarca por falecimento de D. Pedro V sem descendência.
Essa locomotiva foi construída no ano de 1855 em Manchester, nas oficinas “Beyer Peackok & Cº Ltd” e é a locomotiva mais antiga em Portugal, tendo trabalhado durante mais de 50 anos, prestando serviço urbano na Linha do Sul e pode ser hoje vista e apreciada no Museu Nacional Ferroviário, no Entroncamento.
A viagem
A composição partiu de Lisboa pelas onze horas da manhã e durou quarenta minutos até ao Carregado. Três quartos de hora depois partiu um segundo comboio de nove carruagens, transportando accionistas e convidados, puxadas por uma outra locomotiva.
Chegados ao Carregado, foram brindados com um banquete volante no pavilhão montado na estação, onde existiam três compartimentos ricamente decorados, sendo um para a família real, outro para o cardeal patriarca e membros do clero que o acompanharam e o último para o corpo diplomático. No exterior foi montado um grande anfiteatro com toldo para os restantes convidados.
Pelas quatro horas e meia da tarde o comboio real, composto pelas duas locomotivas e catorze carruagens, regressou à capital, numa viagem que duraria duas horas, porque estiveram parados cerca de uma hora em Sacavém devido a uma avaria na tubagem de uma das locomotivas. Como essa locomotiva ficara inutilizada, restou à outra encetar o regresso a Lisboa, com seis carruagens.
Só por volta das dez horas da noite foi possível trazer à capital os restantes convidados.
Em jeito de conclusão poderemos afirmar que a primeira viagem de comboio em Portugal foi bastante curta e atribulada. Poucos quilómetros bastaram, no entanto, para revolucionar a nossa geografia, apesar das muitas vozes contra, pois “Velhos do Restelo” há-os contra tudo o que é o progresso, ou simplesmente porque qualquer português suave sofre ainda do complexo gerado por aquela malfadada palavra “inveja”, com que o grande Luís de Camões concluiu a sua obra “Os Lusíadas”.
Text by the Mário Mendes (Fermodel Member)
Veja mais sobre esta data comemorativa no site do National Railway Museum